Há diversos pesticidas pulverizando grandes quantidades de milho e de soja, que são fornecidos a vários animais de corte ou produtivos. Com antibióticos em abundância, os animais crescem muito rápido em pouquíssimo espaço.
O problema da abundância do sistema alimentar moderno dos EUA levou o país a outro contratempo: a escassez. Afinal, menos raças de gado e culturas – suas genéticas controladas por um punhado de empresas – e o uso excessivo de antibióticos deixa os consumidores com escolhas escassas, e os médicos com menos e menos medicamentos para combater as superbactérias que criamos.
Como chegamos nesta situação? Henry Ford e a soja podem explicar.
Dois livros recentemente publicados mostram uma imagem fascinante de como o governo e a indústria ajudaram os consumidores e os agricultores a curto prazo, mas, trouxeram uma encrenca a longo prazo. “This Blessed Earth: A Year in the Life of an American Family Farm” (tradução livre, Esta terra abençoada: um ano na vida de uma fazenda familiar americana; publicação WW Norton & Co.), de Ted Genoways, acompanha uma família fazendeira multigeracional no Nebraska, de colheita a colheita, voltando-se para os momentos cruciais da história que pavimentaram o caminho seguido.
O livro “Big Chicken” (tradução livre, Galinha de grande porte; National Geographic), de Maryn McKenna, mostra como a adição de antibióticos à alimentação do frango após a Segunda Guerra Mundial trouxe a proteína barata para a mesa e o rápido crescimento de uma crise de saúde pública – resistência aos antibióticos – para o mundo.
Soja e Henry Ford
A soja agora é parte integrante do sistema alimentar dos EUA, mas sua introdução não tem nada a ver com o alimento. A soja foi cultivada como uma possível resposta à iminente escassez de petróleo no início do século XX. E o seu maior incentivador inicial não foi uma empresa de alimentos, mas, como o Genoways descreve, foi Henry Ford.
No final da década de 1920, a América foi invadida por grãos, deixando os agricultores se perguntando o que fariam com tudo aquilo. Uma peça intitulada “Wanted: Machines to Eat Up Our Crop Surplus” (tradução livre, Procura-se: máquinas para comer o excedente da safra) apareceu na revista Farm & Fireside em 1927, sugerindo que talvez o governo pudesse financiar pesquisas para transformar esses grãos em produtos industriais.
Ford gostou da ideia. Ele dependia do petróleo tanto para produzir seus carros, quanto para abastecê-los. E o plano, se legalizado, poderia criar mais demanda pelo seu equipamento agrícola, a mesma engrenagem que ajudou a criar o excesso de grãos em primeiro lugar. O empreendedor simplesmente não queria que o governo dirigisse essa revisão econômica. Queria fazê-lo sozinho.
Henry Ford expandiu o laboratório agrícola da empresa e supervisionou diretamente os novos esforços para transformar plantas em plásticos e biocombustíveis. Após a queda do mercado de ações de 1929, o Departamento de Agricultura dos EUA procurou encontrar novas culturas para salvar os agricultores. Na China, William J. Morse, um cientista da agência regulatória USDA interessado em soja, coletou milhares de variedades para os pesquisadores dos EUA. Ford soube do projeto e instruiu sua equipe a acompanhá-lo mais de perto. Então, eles descobriram que da soja era possível gerar lubrificantes e plásticos, bem como óleos e uma refeição rica em proteínas.
Em 1931, Ford investiu um milhão de dólares em pesquisa e, na primavera seguinte, 300 variedades estavam sendo cultivadas em 3.237 hectares em área rural de Michigan; no ano seguinte, cerca de 4.857 hectares.
Logo os fazendeiros estavam plantando 14.164 hectares de soja. Ford estava comprando tudo e vendendo também – ele ofereceu produtos cozidos e sorvete à base de soja na empresa e, enquanto hospedava uma convenção da Associação Americana de Soja, disse que podia ver um futuro onde os carros “poderiam ser feitos de subprodutos da agricultura”.
A expansão da soja nos EUA pelas mãos de Ford: frangos e antibióticos
A empresa Ford agitou o mercado em expansão da soja para o fazendeiro americano. No verão de 1934, durante uma grande seca que matou o milho e o trigo, a soja prevaleceu contra a linhaça e a canola, com uma colheita de 23 milhões de bushels*. No ano seguinte, chegou a cerca de 70 milhões de bushels; ao final da década, cerca de 100 milhões de bushels foram colhidos. Durante o pior período da Grande Depressão, Genoways escreve, a soja estava trazendo mais dinheiro para os agricultores do que a cevada e o centeio.
Foi bom demais para durar. Em 1938, uma gigantesca reserva de petróleo foi descoberta na Arábia Saudita, e a necessidade de alternativas baratas para o petróleo quase desapareceu.
Um momento de sorte – o declínio causado pela seca na colheita de grãos deu vida à soja como alimento para gado – trouxe seus próprios desafios, como McKenna explica em seu livro sobre o aumento de antibióticos na agricultura. Enquanto a demanda por proteínas para alimentar os soldados americanos na Segunda Guerra Mundial ajudou a quase triplicar a produção de frango, no final da guerra a indústria perdeu rapidamente seu mercado garantido e encontrou-se com mais aves do que poderia vender. De repente, o fornecimento de farinha de peixe para a indústria alimentícia se tornou muito caro.
A soja, não. O problema foi que as aves não estavam crescendo tão rápido ao se alimentar de soja. “As pessoas falaram sobre a necessidade de adicionar um impulso nutritivo”, escreve McKenna, “um fator de proteína animal”.
Na Merck & Co., os pesquisadores descobriram que um subproduto da produção do antibiótico estreptomicina (que tinha o solo adubado como material bruto) poderia alimentar aves para a engorda. Em 1948, uma empresa rival, Lederle Laboratories, estava fazendo o mesmo com um subproduto de um dos seus próprios antibióticos, Aureomycin.
Enquanto isso, a indústria estava transferindo as aves para ambientes fechados, suas vidas agora desprovidas de alimentos naturais como insetos, para não mencionar a luz solar. Os antibióticos ajudaram a suavizar essa transição, alterando o metabolismo dos animais para ajudá-los a se adaptarem à vida não mais ao natural. Lederle anunciou seus resultados em 1950 e a indústria aprovou. Em 1955, os fazendeiros americanos estavam dando aos animais cerca de 226.700 kg de antibióticos por ano.
Alarme vermelho contra os antibióticos
Alguns ligaram o alarme sobre as possíveis consequências assustadoras. Já em 1945, Alexander Fleming, que descobriu a penicilina, o primeiro antibiótico, foi citado no New York Times alertando que o uso de doses muito baixas para acabar com infecções, como era prática comum na agricultura, poderia levar à evolução de mais micróbios resistentes.
Em 1955, isso já estava acontecendo. Uma cepa resistente à penicilina da bactéria Staphylococcus que viajou da Austrália para os EUA infectou mais de 5 mil mães e seus recém-nascidos perto de Seattle. Segundo McKenna, os próprios veterinários de Lederle emitiram avisos de que as vendas de Aureomycin como promotor de crescimento poderiam levar à resistência aos antibióticos.
Atualmente, cerca de 80% dos antibióticos produzidos nos EUA são fornecidos a animais de fazenda, e a Organização das Nações Unidas (ONU) acaba de afirmar que a resistência aos antibióticos é “uma das maiores ameaças para a saúde global”. Em 2016, um relatório encomendado pelo ex-primeiro-ministro britânico, David Cameron, estimou que, em 2014, havia mais de 700 mil mortes por ano de infecções bacterianas causadas por superbactérias.
As bactérias resistentes aos antibióticos podem viajar não apenas em alimentos, mas em fontes de água, poeira e até mesmo em roupas; no entanto, a agência americana reguladora FDA se atrasou em comparação aos reguladores europeus quanto ao controle do uso de antibióticos nas fazendas.
Resistência a antibióticos: perigo para a saúde mundial
“A questão da resistência aos antibióticos é muito complexa”, o Conselho Nacional de Frango disse em um comunicado em resposta ao livro Big Chicken. “Sabemos que a resistência aos antibióticos pode surgir em animais e pode se transferir para humanos, às vezes deixando-os doentes. A questão é: como isso acontece?”, questionou.
O Conselho lista várias medidas preventivas utilizadas atualmente pelos produtores, incluindo o processo da FDA de revisão dos antibióticos e programas de monitoramento e vigilância. Ao mesmo tempo, rejeita o princípio central do livro de McKenna, dizendo que a transferência da resistência dos animais para os seres humanos “não ocorre em quantidades mensuráveis, se for o caso”, embora esta transferência já esteja comprovada cientificamente de maneira extensa.
Quase todos os frangos consumidos no mundo atual têm sua genética controlada por duas empresas: Aviagen Inc. e Cobb-Vantress da Tyson Foods Inc.. Como observa Genoways, a genética dos alimentos fornecidos aos animais – milho e soja – é similarmente homogênea. Cerca de 90% das culturas no mercado de soja e quase três quartos do mercado de milho são “Roundup Ready”, como Monsanto Co. e DuPont Pioneer os apelidaram, ou seja, geneticamente modificados para serem resistentes aos pesticidas Roundup amplamente utilizados. Isso permite que os agricultores apliquem o pesticida de maneira extensa.
Mesmo em face de tudo isso, McKenna está extremamente esperançosa. Os consumidores estão mudando a direção de como os alimentos são produzidos. O efetivo de aves da empresa Perdue Farms Inc. agora é 95% livre de antibióticos. Em 2014, a Chick-fil-A Inc. comprometeu-se a um fornecimento de frango sem antibióticos dentro de cinco anos. A Bell & Evans Holding LLC, um produtor privado de aves que utiliza aditivos alimentares como óleo de orégano e funcho em vez de antibióticos, processa anualmente cerca de 60 milhões de aves orgânicas e não orgânicas. Na França, o Label Rouge, um selo reservado para aves criadas sob espaço rigoroso e requisitos de acesso ao exterior, tornou-se muito popular.
“Apesar de tudo que aconteceu, obtivemos um movimento de consumidores que é muito mais ativista”, McKenna afirmou em uma entrevista. “Isso facilitou outras empresas a atuarem da maneira que Perdue e Chick-fil-A.”
Genoways é menos otimista quanto à capacidade do consumidor de empurrar a agricultura em uma direção mais saudável: “é sempre fácil dizer que queremos cultivar de maneira mais sustentável e, na realidade, os próprios agricultores querem isso. Mas se realmente queremos que as coisas mudem, precisamos eleger pessoas que entendem do assunto, que cuidem e que melhorem a situação para os agricultores e os consumidores ao mesmo tempo. O progresso é realmente frágil, e muitas vezes os impactos negativos são duradouros, enquanto as melhorias podem ser de curta duração”, conclui.
*N.daT.: O bushel é uma medida de capacidade para mercadorias sólidas, como grãos e farinhas, utilizada nos países anglo-saxões (1 bushel de soja equivale a 27.21kg).
Traduzido e adaptado por Essentia Pharma.
Fonte: https://www.bloomberg.com/news/features/2017-09-20/henry-ford-and-soy-set-up-antibiotic-resistance-deadly-superbugs
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