Recentemente, muitos de nós tivemos a oportunidade de assistir a um vídeo altamente interessante na internet cobrindo uma palestra do Dr. Salim Yusuf em uma recente reunião de Atualização de Cardiologia. O Dr. Yusuf é o presidente da Marion W. Burke Chair em Doença Cardiovascular na Faculdade de Medicina da Universidade McMaster em Hamilton, Ontário, Canadá, e atual presidente da Federação Mundial do Coração. Em sua palestra, ele apresentou dados do estudo PURE sobre a relação entre o consumo de diferentes macronutrientes e o risco de doenças cardiovasculares (DCV).
O vídeo recebeu uma enorme atenção, principalmente porque os dados pareciam desafiar seriamente as diretrizes e recomendações atuais de dieta por sociedades profissionais respeitadas, como a American Heart Association (AHA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Infelizmente, o vídeo não está mais disponível na internet (embora você ainda possa encontrá-lo em alguns “becos”), devido a uma reivindicação de direitos autorais pela Zürich Heart House.
Parece que uma grande parte dos dados apresentados pelo Dr. Yusuf ainda será publicado em revistas médicas revisadas por pares. Assim, a introdução generalizada dos resultados pode ser uma questão delicada. No entanto, a apresentação de dados não publicados oficialmente, quando somente expostos previamente em reuniões e conferências profissionais, é bastante comum. Considerando que vivemos na era da informação, pode ser difícil (e possivelmente não ético) bloquear a disseminação de conhecimentos valiosos do restante da comunidade médica e do público.
PURE é uma abreviatura de Prospective Urban and Rural Epidemiological Study (Estudo Epidemiológico Urbano e Rural Prospectivo). É um grande estudo epidemiológico destinado a examinar a relação das influências societárias nos comportamentos do estilo de vida humano, fatores de risco cardiovascular e incidência de doenças crônicas não transmissíveis.(1)
O estudo PURE recrutou 153.996 adultos de 17 países entre 35 e 70 anos entre 2003 e 2009 de comunidades urbanas e rurais em regiões de baixa, média e alta renda.(2) Mais tarde, foi expandido para mais países e ainda continua em andamento.
Vários documentos sobre o projeto do estudo estão disponíveis, mas até o momento, os resultados não foram amplamente apresentados.(3) No entanto, no ano passado, foi escrito uma publicação que abordava alguns dados do estudo PURE apresentado no Congresso Mundial de Cardiologia e Saúde Cardiovascular da Federação Mundial do Coração, no verão de 2016, na Cidade do México. Os dados sugerem que, ao contrário do que anteriormente foi defendido publicamente, dietas com alto teor de carboidratos parecem ser piores para os lipídios sanguíneos do que dietas com alto teor de gordura.(4)
Os especialistas concordam que os fatores do estilo de vida afetam significativamente o risco de desenvolver DCV. Quando se trata de dieta, o foco tem sido frequentemente em macronutrientes e seus efeitos em marcadores de substituição, como o colesterol no sangue. A fim de manter mínima a ingestão de gordura, a AHA, a OMS e muitas outras autoridades de saúde pública recomendaram que de 55 a 60 por cento das calorias consumidas fossem provenientes de carboidratos.
A crescente prevalência de obesidade e diabetes tipo 2 sugere que ou as autoridades de saúde pública falharam em enviar a mensagem correta à indústria alimentar e ao público ou suas recomendações simplesmente não foram implementadas. É por esta razão que ansiosamente aguardamos os resultados da parte nutricional do estudo PURE. Obviamente, é de interesse público que esses dados estejam amplamente disponíveis.
Antes de avançar, é importante reconhecer que PURE é um estudo epidemiológico e não um estudo randomizado e, como tal, tem um valor limitado quando se trata de provar uma relação causal. Os questionários de frequência alimentar foram usados para medir hábitos alimentares. Embora este método tenha várias limitações, os benefícios desses questionários são a sua relativa simplicidade e facilidade de administrar. Um estudo piloto sugeriu que os questionários de frequência alimentar utilizados no estudo PURE poderiam capturar a ingestão alimentar adequadamente.(5)
Vejamos os dados apresentados pelo Dr. Yusuf sobre a associação entre o consumo de carboidratos e de gorduras e as doenças cardiovasculares. Na mesma palestra, ele também apresentou dados sobre a ingestão de sal, pressão arterial e o papel das frutas e vegetais. Esses dados não são abordados aqui.
Carboidratos, gorduras e DCV no estudo PURE
A ingestão de carboidratos foi dividida em quintis*: aqueles no Q5 consumiram mais, e aqueles no Q1 consumiram menos. Conforme apresentado pelo Dr. Yusuf, usando-se a menor ingestão de carboidratos (Q1) como referência, observa-se um risco aumentado de DCV com o aumento do consumo de carboidratos.
O Dr. Yusuf apontou que as diretrizes dietéticas anteriores apontavam “reduzir o consumo de gorduras e compensá-las por carboidratos. Então, essencialmente, aumentamos a ingestão de carboidratos na maioria dos países ocidentais, e isso provavelmente está sendo prejudicial”.
Além disso, Dr. Yusuf afirmou: “Os achados nos surpreenderam. Na verdade, descobrimos que o aumento do consumo de gorduras se mostrou protetor. Estamos falando de todas as gorduras. Portanto, este primeiro gráfico desafia a OMS e as diretrizes da AHA sobre dieta”.
Com relação aos carboidratos como porcentagem do consumo diário de energia: “uma vez que você passa de cerca de 40% ou de 55% da ingestão de carboidratos como porcentagem de energia, há um aumento acentuado no risco de DCV. As diretrizes da OMS dizem que até cerca de 75% dos carboidratos são positivos. Mas isso está errado”.
Então ele acrescenta:
“Mais uma vez, as gorduras totais são benéficas. Muito baixo teor de gordura é inadequado, mas o seu excesso é, provavelmente, maléfico. Os estudos originais da Finlândia se basearam em níveis extremamente elevados de gordura, e não em níveis que as populações consomem habitualmente.
Será que importa o tipo de gordura?
As orientações alimentares atuais recomendam a limitação da ingestão de gorduras saturadas e sua substituição por gorduras monoinsaturadas e poli-insaturadas. Os produtos lácteos com baixo teor de gordura são recomendados com a finalidade de evitar as gorduras saturadas, e os óleos vegetais para serem utilizados em vez de manteiga.
Como o Dr. Yusuf ressalta, essas recomendações não são apoiadas pelos dados do estudo PURE:
“Então, se você analisar todos os tipos de gorduras saturadas (consumidas pelos participantes do estudo), verá que não há realmente um padrão claro. Dentro da faixa normal, as gorduras saturadas não são prejudiciais. Podem até ser um pouco benéficas. Mas não maléficas.
Quanto aos ácidos graxos monoinsaturados, encontrados no óleo de oliva, óleo de canola e que fazem parte principal da dieta mediterrânea, o benefício é claro. Os ácidos graxos poli-insaturados, quando principalmente originados de óleos vegetais, ou seja, óleos processados, o benefício é totalmente neutro.
Pense na mudança de consumo de óleos que ocorreu no mundo nos últimos 30 anos. Ela foi conduzida pela indústria alimentícia. Passou de gorduras naturais (fonte animal) para gorduras vegetais, com uma produção mais fácil ou de custo mais baixo, gerando melhores lucros. E essa mudança foi aceita pela AHA, e a OMS apenas repetiu.
Então, fundamentalmente: algumas gorduras são boas, algumas não tanto, mas são os carboidratos que podem ser piores”.
… e o Dr. Yusuf continua:
“Adicionalmente, nos EUA, existe uma grande tendência para a redução do consumo de leite, ou que o consumo seja de leite desnatado (2% ou 1% de gordura). Qual é a evidência para tal? Um grande zero. Existe absolutamente nenhuma evidência de que o leite com baixo teor de gordura seja melhor para você. Os dados mostram que as fontes lácteas de gorduras saturadas são protetoras (da saúde).
Se você analisar as fontes de gorduras saturadas provenientes de carnes, elas se mostram neutras. E se você olhar para o consumo de carne branca, como o frango e o peixe, verá uma tendência benéfica. Assim, a carne vermelha em quantidades moderadas não é prejudicial e a carne branca pode ser moderadamente benéfica. Mas as gorduras lácteas, como o queijo, são provavelmente boas para você, e quanto ao leite, realmente não há dados para reduzir o seu teor de gordura”.
Gorduras saturadas, colesterol LDL e DCV
O Dr. Yusuf também aborda a relação do consumo de gorduras saturadas e o colesterol LDL, com base em dados do estudo PURE:
“Então, por que erramos? Nós erramos por causa das substituições.
O caso sobre as gorduras saturadas versus LDL é consistente. Os dados mostram que à medida que você aumenta a quantidade de gorduras saturadas, seu LDL aumenta. Mas, primeiro, observe quanto de aumento: 150 mil pessoas na análise – aumento aproximado de 2,85 (108 mg/dL) a pouco menos de 3 (116 mg/dL). Cerca de 0,1 mmol/L (3,9 mg/dL) com base em uma grande variedade de porcentagem de gordura saturada (consumo).
Mas a doença cardiovascular mostra exatamente uma resultante oposta. Muitos testes randomizados de redução de gordura foram realizados. E, além do antigo estudo norueguês, onde o consumo de gorduras saturadas era excessivo, mostrando benefícios com a sua redução, temos o estudo Women’s Health Initiative (Iniciativa para a Saúde da Mulher). Nele, a redução das gorduras totais, bem como das gorduras saturadas não apresentaram benefícios, sendo este um grande estudo de 49 mil mulheres que foram seguidas durante sete anos”.
Relações de macronutrientes e ApoA/ApoB
O Dr. Yusuf também aborda os efeitos da ingestão de carboidratos em medidas mais avançadas de lipoproteínas:
“E quanto à ingestão de carboidratos? Se você analisar o colesterol LDL, encontrará uma relação inversa. Mas se você olhar para a relação ApoB/ApoA, que hoje sabemos que é o marcador mais sensível para a predição de risco, há um aumento acentuado – de cerca de 0,72 a quase 0,85 com o aumento da ingestão de carboidratos. No entanto, no caso das gorduras saturadas, a relação se mostra neutra ou tende a diminuir”.
“Então, dependendo do marcador, você pode fazer diferentes tipos de extrapolações. Se você olhar para os ácidos graxos monoinsaturados e ApoB/ApoA, observe a queda acentuada de cerca de 0,8 para aproximadamente 0,72. A relação ApoB/ApoA situa melhor os fatores de risco do que o colesterol LDL. E a gordura poli-insaturada se mostra neutra”.
Considerações finais
As observações finais do Dr. Yusuf incluem estas palavras:
“Ao contrário das crenças comuns, as recomendações atuais para reduzir as gorduras saturadas não têm base científica. Eu não sou o único a dizer isso. Você deve ter ouvido falar do livro chamado “The Big Fat Surprise” de Nina Teicholz. Ela abalou o mundo da nutrição, mas com entendimento do caso.
Por exemplo, você sabia que o estudo Seven Country Study que realmente tinham uma linha direta entre a ingestão de gordura e DCV é inadequado? Estou usando a palavra inadequado porque dos 23 países participantes do estudo, os pesquisadores usaram os dados dos sete melhores que se ajustaram nessa linha de raciocínio (gorduras como fator de risco à DCV), e é isso que está lá. Se você ler a literatura, descobrirá isso. O campo da nutrição foi distorcido”.
Então, será que há tempo para uma reavaliação das recomendações públicas sobre a relação entre dieta e doença cardíaca após a apresentação dos dados sobre macronutrientes do estudo PURE?
*N.daT.: Quintil (plural, quintis) ou uma das cinco partes da amostra ordenada: primeiro quintil (Q1/5), segundo quintil (Q2/5)…
Artigo traduzido por Essentia Pharma
Gráficos e referências no artigo original: www.docsopinion.com/2017/02/27/carbs-fats-heart-disease-pure-study/
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